As contribuições dos teólogos Juan Luis Segundo e Casiano Floristan, mesmo estando separadas por centenas de anos da construção de Friedric Daniel Schleiermacher, elas se completam e exerce grande influência na prática pastoral contemporânea, principalmente aquela norteada por princípios libertadores e que tendem interpretar as afirmações sobre Deus, como interpretação da linguagem da fé, movida pela inter-relação com o sagrado e externada pela prática cristã.
Neste contexto, a prática teológica há de considerar a superação de um modelo teológico acentuadamente eclesiástico e clerical. Eclesiástico, porque sua função principal consiste em encontrar na Escritura e na Tradição fundamentos para o ensinamento do magistério pastoral. Clerical, porque é exercida exclusivamente por padres e pastores. Esta superação significa a passagem para uma teologia que busca, sobretudo, ser intérprete da linguagem religiosa como doadora de sentido de vida e com a participação da comunidade.
Friedrich Daniel Schleiermacher (1768 – 1834), filósofo e teólogo, apresenta uma estrutura da Teologia inspirada na corrente idealista de Platão e de Kant, dividindo-a em três facetas: filosófica, histórica e prática. Sendo que esta, a prática, recebe sua dedicação e nela está a relevância de sua contribuição, formatada a partir de sua concepção de Pedagogia como “ciência derivada da ética e coordenada com a política”, sendo a educação “a direção e prosseguimento do desenvolver do indivíduo pela influência exterior”, onde manifesta ações da família, igreja, ciência e sobretudo, da comunidade em que está inserido. É essa concepção que influenciou seu pensar teológico, daí sua preocupação com a formação prática dos teólogos, culminando com a prática religiosa da igreja, a qual é balizada, dirigida, estimulada ou orientada pela prática pastoral mediante a interpretação das necessidades da igreja e não somente pela interpretação dogmática.
Walter Salles, em seu artigo “O estudo teológico da religião: Uma aproximação hermenêutica”, nos ensina que Schleiermacher concebe a Teologia Prática com o sentimento de que a religião é constitutiva de toda a vida humana, que a experiência do Infinito é, pois, sentimento que implica consciência da absoluta dependência de Deus, e a experiência de não se sentir a origem de si mesmo, uma vez que na religião o ser humano tem consciência de suas próprias limitações, da facticidade e da relatividade da sua existência e de vincular todos os afetos a Deus. Este sentimento torna-se parte integrante de toda a autocompreensão (autoconsciência) humana, que diante da absoluta dependência de Deus produz, constrói uma nova práxis de relações humanas que influenciam na vida diária da sociedade e na própria concepção do homem. Assim, a religião é concebida como a autoconsciência de um “ser-em-relação”, relação do finito com o Infinito e essa relação, como algo constitutivo do ser humano, diz respeito ao todo de sua existência.
Assim sendo, a Teologia se desenvolve no âmbito da afeição e receptividade, imediatidade e auto-experiência, e no que diz respeito ao seu estudo, somente podemos compreender a nossa relação com Deus, e não a realidade transcendente de Deus em si mesma. Assim, o exercício da teologia consiste em oferecer uma descrição clara e vivificante de uma experiência interior comum, ou seja, a teologia é a clarificação de uma experiência existencial concreta: o ponto de partida do trabalho teológico é a experiência de fé de diferentes pessoas em distintas situações.
Ainda na esteira de Walter Sales, Juan Luis Segundo (1925-1996), em sua obra intitulada “O dogma que liberta”, define de forma sucinta o seu trabalho teológico: “o que de mim se exigia era a progressiva formação de um modo cristão e global de pensar que pudesse lançar luz sobre uma realidade complexa, na qual a fé de um grupo (preferentemente) de leigos se achasse comprometida”. Dessa forma, a teologia surge como a busca de sentido para a existência humana, ou ainda, consiste em ajudar o ser humano a ser mais humano, falando-lhe de Deus, do Deus que se revela. A Teologia deve, pois, ajudar o fiel a melhor compreender a sua fé em sintonia com a sua vida e a sua história, ou dito em termos neotestamentários, deve ajudar as pessoas a darem razão de sua esperança (1Pd 3,15).
Uma das riquezas da reflexão teológica de J.L.Segundo está no esforço em demonstrar a impossibilidade de uma ciência neutra, afinal toda ciência está a serviço de uma escala de valores, e isso é profundamente humano. Não existe pesquisa, por mais objetiva que pretenda ser, que não seja realizada fundamentada em um horizonte de interesses. Conhecer é sempre interpretar, e a estrutura hermenêutica de toda forma de saber faz-nos entrar com nossos paradigmas e categorias na interpretação do objeto de nossa experiência ou pesquisa.
J.L.Segundo faz da fé religiosa caso particular de uma dimensão antropológica universal, pois podemos dizer que todo ser humano necessita de testemunhos referenciais para articular seu mundo de valores, os quais são oferecidos pela sociedade e exigem um ato de fé, pois não podemos experimentar até as últimas conseqüências todos os valores que irão fundamentar a nossa existência antes de nos decidirmos por eles. Não sabemos por experiência própria o quão satisfatório será o caminho por nós escolhido, pois a nossa escolha implica uma aposta, sendo a idéia de um caminho satisfatório construída das experiências alheias, não comprovadas previamente por nós16. A fé como uma dimensão antropológica significa que ela é constitutiva do ser humano, representando uma aposta existencial e fazendo da sua verificabilidade última uma instância escatológica. Assumo algo como verdadeiro ainda que não o possa verificar empiricamente, por enquanto. Trata-se de uma reapropriação pessoal de valores simbolicamente manifestos no ambiente cultural por outras pessoas.
Segundo Casiano Floristán, “toda práxis religiosa tem como objetivo último a transformação de um determinado ser social, que por sua vez transforma a sociedade [o que nos leva a] considerar a tradição cristã como transmissão de práticas e ações. Neste sentido o Cristianismo se configura como comunidade de narração de uma práxis profética e messiânica. Na Bíblia, práxis é a obra ou ação produzida pelo homem com uma determinada conduta e perspectiva religiosa. A práxis de Jesus, que para os crentes é salvadora, se traduz na realização da obra de Deus. Toda a vida e obra de Jesus foi práxis”. Para Floristán, “Jesus não apenas fala, mas age (cf. Mt. 9:35-38). Assim, ele vê no processo evangelizador de Jesus três aspectos: um caminhar com os pés, um olhar sobre a multidão e o toque das mãos, tudo com um único objetivo que é a mudança no cristão, que por sua vez produz mudanças na Igreja e na sociedade, pois a evangelização suscita fé e conversão pessoais, eclesiais e sociais.
Para desenvolver uma prática pastoral orientada pelas vertentes apresentadas, é necessária uma visão de fé diferente da fé dogmática, é preciso compreender que pessoas como nós viveram determinados acontecimentos históricos como revelação de Deus, querendo distingui-los de outros acontecimentos ordinários, e encarnam valores que dão sentido à existência humana. Por isso, por meio da fé religiosa, não se trata de declarar a aceitação de normas e dogmas, e sim aceitar uma proposta existencial apresentada e encarnada numa pessoa concreta.
A fé cristã é a aceitação dos valores que Deus propõe na pessoa de Jesus Cristo, e isso acontece pelos caminhos da história, marcada por conquistas, esperanças e dilemas humanos. A fé religiosa determina, pois, valores fundamentais naqueles que a aceitam, e na religião cristã esses valores ganham maior visibilidade com a proximidade do Reino de Deus proclamado por Jesus Cristo, proximidade que provoca uma metanóia, uma modificação radical na escala de valores (Mc 1, 14-15). A fé religiosa edificada da fé antropológica surge como fonte de uma nova estrutura significativa e deve dar soluções humanas a questões humanas, desde um processo que J.L.Segundo chama de aprender a aprender: “depositamos a fé humana naqueles que souberam manter certos valores, basicamente semelhantes aos nossos, aprendendo a realizá-los apesar de mudanças, incertezas e fracassos”. Aprender a aprender com pessoas que vivem esses valores em determinadas situações que são tidas como revelação de Deus.
A pastoral da Teologia Prática faz abertura aos problemas mais urgentes da humanidade, pois Deus é revelado nas vicissitudes, dramas, alegrias e esperanças do homem. A revelação de Deus não cai do céu, mas brota das experiências humanas cuja textura é sempre um apelo à interpretação, e esta concepção de revelação nos afasta da idéia de que a fé se tornaria religiosa quando abandonássemos as testemunhas humanas para apoiar-nos exclusivamente na autoridade de Deus, ou seja, deixar os sinais dos tempos para fixar nossos olhar nos sinais dos céus (Mt 16,1-4).
Para a pastoral da práxis da fé, crer em Jesus como o Cristo, supõe que tenhamos fé naqueles que o conheceram, interpretaram e nos transmitiram sua crença nele, uma vez que não possuímos um acesso direto à sua vida e à sua palavra. O “eu creio” da fé pessoal supõe o “nós cremos” da tradição, e os relatos sobre Jesus são sempre atos interpretativos e não testemunhos objetivos.
Ronaldo Muñoz diz que “ a Igreja e suas comunidade hão de oferecer às pessoas o espaço e as condições de que necessitam para dizer sua própria palavra, expondo seus problemas, sua visão da vida e da convivência humana, sua fé e esperança. Hão de dar-lhes o espaço de que necessitam para criar e multiplicar seus gestos de solidariedade nas necessidades, no trabalho, gestos que devem antecipar um mundo novo, como sinais da presença do reinado de Deus que alimentam a esperança de sua plenitude futura”. Tal espaço é o espaço da prática pastoral orientado pela Teologia Prática – em redundância – , da práxis da fé.
André Luiz Gomes Schröder
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